O que é uso compartilhado de drogas?

Uso compartilhado de drogas é um crime intermediário entre tráfico (art. 33) e porte de drogas para consumo próprio (art. 28) para punir aquele que oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem.

É muito comum que um grupo de amigos decida “rachar” a compra de determinada quantidade de maconha para usar juntos, sendo certo que um deles será o responsável por “fazer o corre”.

Mas pode acontecer desse amigo ser abordado por policiais militares após ter adquirido a substância ilícita e ser surpreendido trazendo-a consigo (na mochila, por exemplo), sem antes, porém, de oferecê-la ao grupo para consumo conjunto. E agora; por qual crime responderá o amigo preso em flagrante?

Pensamos que deveria responder por uso compartilhado de drogas (crime de menor potencial ofensivo – art. 61 da Lei n. 9.099/1995 – processado e julgado pelos Juizados Especiais Criminais) e não por tráfico de entorpecentes (art. 33, caput, na modalidade “entregar a consumo”, da Lei n. 11.343/2006), como já vimos acontecer no nosso dia a dia de trabalho no escritório como Advogado Criminalista.

Isso porque, nas hipóteses de consumo compartilhado, é extremamente comum que a aquisição da droga por um dos agentes seja possível apenas com a contribuição financeira dos demais. Em tal situação, parece não haver qualquer objetivo de lucro por parte daquele responsável pela compra da droga. Afinal, o valor por ele amealhado não será revertido em seu benefício, já que o rateamento entre os usuários foi feito apenas para que fosse atingido o montante necessário para a aquisição da droga (Lima, 2020, p. 1068).

Em outras palavras, por não haver objetivo de lucro ao trazer consigo a droga (ainda) proibida, ou seja, por não pretender vender, expor à venda, etc., não pode(ria) o comportamento do amigo preso em flagrante no nosso exemplo ser enquadrado no art. 33, caput (tráfico), de modo que, considerando que pretendia oferecê-la, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoas de seu relacionamento, para juntos a consumirem, a ação se subsume ao art. 33, § 3° (consumo compartilhado) tipo penal intermediário entre tráfico e porte estabelecido pela Lei de Drogas (Carvalho, 2013, p. 345).

Uso compartilhado de drogas: requisitos

Para que se possa falar em uso compartilhado de drogas, entretanto, é necessário o preenchimento cumulativo de alguns requisitos (elementos do tipo objetivo e subjetivo), quais sejam:

I – Que o oferecimento da droga não ocorra de maneira habitual (frequente);

II – Que não seja oferecida com objetivo de se auferir lucro;

III – Que seja oferecida a pessoas de seu relacionamento (conhecidas, próximas) e;

IV – Que seja oferecida para juntos a consumirem.

É bem verdade, devemos dizer, que o amigo do nosso exemplo, preso em flagrante trazendo consigo determinada quantidade de maconha adquirida a partir da soma dos recursos de um grupo de pessoas de seu relacionamento, para juntos a consumirem, muito provavelmente, em um caso concreto, seria criminalizado sob o rótulo de “traficante” e responderia pelo art. 33, caput, na modalidade “trazer consigo”.

O debate sobre a adequação típica do comportamento descrito neste capítulo não é novo, sucedendo durante a vigência da revogada Lei n. 6.368/1976 – que não trazia figura delitiva intermediária entre tráfico e porte como a atualmente prevista no art. 33, § 3º – divergindo a doutrina à época sobre sua capitulação no art. 12 ou no art. 16, respectivamente, conforme se entendia haver (ou não) finalidade mercantil na entrega de droga para consumo compartilhado, desentendimento que o legislador da Lei n. 11.343/2006 pretendeu resolver com a criação do tipo legal em análise.

O Superior Tribunal de Justiça, a propósito, possui julgado reconhecendo que a prática tem evidenciado que a concepção expansiva da figura de quem é traficante acaba levando à inclusão, nesse conceito, de cessões altruístas, de consumo compartilhado, de aquisição de drogas em conjunto para consumo próprio, porém, trabalhando na dicotomia porte para consumo pessoal e tráfico de drogas, desclassificando a conduta para o art. 28, caput, quando não demonstrado o propósito de obter qualquer benefício na conduta do acusado. Confiram a ementa:

RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. PLEITO DESCLASSIFICATÓRIO. DESNECESSÁRIO REVOLVIMENTO DE PROVAS. ALEGADA POSSE DE DROGAS PARA CONSUMO PRÓPRIO. AUSÊNCIA DE PROVA DA TRAFICÂNCIA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. ÔNUS DA PROVA NO PROCESSO PENAL. REGRA PROBATÓRIA DECORRENTE DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. RECURSO PROVIDO. 1. Não se desconhece o entendimento pacífico da jurisprudência – tanto deste Superior Tribunal quanto do Supremo Tribunal Federal – de que a pretensão de desclassificação de um delito exige, em regra, o revolvimento do conjunto fático-probatório produzido nos autos, providência incabível, em princípio, em sede de recurso especial. 2. Todavia, a moldura fática delineada na sentença e no acórdão não demonstrou o fim de mercancia, nem afastou de forma inconteste a afirmação do réu de que a droga apreendida destinava-se ao seu consumo pessoal. 3. A Lei n. 11.343/2006 não determina parâmetros seguros de diferenciação entre as figuras do usuário e a do pequeno, médio ou grande traficante, questão essa, aliás, que já era problemática na lei anterior (n. 6.368/1976) – e que continua na legislação atual. 4. Não por outro motivo, a prática tem evidenciado que a concepção expansiva da figura de quem é traficante acaba levando à inclusão, nesse conceito, de cessões altruístas, de consumo compartilhado, de aquisição de drogas em conjunto para consumo próprio e, por vezes, até de administração de substâncias entorpecentes para fins medicinais. 5. A atual (embora não recente) crise do sistema penitenciário brasileiro e o fato de o Brasil possuir, hoje, a terceira maior população carcerária do mundo – segundo o Centro Internacional de Estudos Prisionais – ICPS (International Centre for Prision Studies) – recomendam não desconsiderar as ponderações feitas neste caso concreto de que efetivamente é temerária, também sob essa perspectiva, a condenação do acusado pelo crime de tráfico de drogas. 6. A conduta imputada pelo Ministério Público – dentre as várias previstas no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006 (que é de conteúdo múltiplo) – foi a de trazer consigo “11 (onze) pedras de crack, divididas em papelotes individuais e escondidas em suas partes íntimas”. Em nenhum momento, o acusado foi visto vendendo, expondo à venda ou oferecendo entorpecentes a terceiros. 7. Não foram mencionados elementos que demonstrem, de modo satisfatório, a destinação comercial do entorpecente localizado com o recorrente. Com efeito, não houve campana policial para averiguação da conduta do recorrente, mas tão somente uma abordagem pessoal em virtude do fato de o coacusado – que conduzia a motocicleta – ter se evadido ao avistar a autoridade policial. 8. O Ministério Público – sobre quem pesa o ônus da prova dos fatos alegados na acusação – não comprovou a ocorrência de mercancia ilícita da droga encontrada em poder do recorrente, ou que a tanto se destinava, de modo que remanesce somente a conduta de trazer consigo a droga, para consumo pessoal, prevista no tipo do caput do art. 28 da Lei n. 11.343/2006. 9. Dada a primariedade do recorrente (conforme reconhecido na sentença), a reprimenda prevista para o delito de posse de drogas para consumo próprio – prestação de serviços à comunidade ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo – não pode superar o prazo de 5 meses (art. 28, § 3º, da Lei n. 11.343/2006). 10. Entretanto, o acusado respondeu ao processo cautelarmente privado de sua liberdade (desde sua prisão em flagrante, em 6/3/2017), e sua custódia preventiva foi mantida na sentença condenatória. 11. Como ele está preso a um lapso temporal superior ao da reprimenda que lhe seria imposta, deve ser reconhecida a extinção de sua punibilidade. 12. Recurso provido para desclassificar a conduta imputada ao réu para o crime previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/2006 e, já cumprido o prazo máximo da sanção cabível – de modo até mais oneroso –, julgar extinta sua punibilidade (REsp n. 1.769.822/PA, rel. Min. Rogério Schietti Cruz, Sexta Turma, j. 27/11/2018).

Na jurisprudência comparada, ao contrário, a Corte Suprema espanhola solidificou entendimento no qual determinadas condutas de aquisição e transporte de drogas, mesmo acima do limite permitido para uso pessoal, configurariam situações de consumo compartilhado. No Recurso de Casación 184/2001 (Resolución 1585/2002), o Tribunal Supremo estabeleceu requisitos genéricos para definição do consumo compartilhado. Em face de o bem jurídico nos delitos de tráfico de entorpecentes ser a saúde pública, sua ofensa ocorreria apenas quando houvesse efetiva possibilidade de transmissão da droga para terceiros não pertencentes ao grupo de consumo. Assim, para o seu reconhecimento, o Supremo Tribunal pressupõe a exclusão de qualquer perigo para o bem jurídico protegido. A exclusão ocorreria quando presentes, genericamente, os seguintes requisitos: (a) dependência dos consumidores na droga adquirida; (b) consumo futuro realizado em local fechado sem risco de difusão para terceiros; (c) quantidade pequena de droga que possibilite o consumo imediato, evitando risco de armazenamento que exceda o consumo compartilhado; (d) consumo sem transcendência social; e (e) identificação das pessoas que integram o grupo de consumidores (Carvalho, 2013, p. 349-351).

A incorporação de tais requisitos pelos tribunais brasileiros contribuiria para um melhor enquadramento típico da ação que exemplificamos neste capítulo, permitindo aos julgadores operar fora dos extremos posse de drogas para consumo pessoal e tráfico, de modo a restringir o espectro de criminalização do art. 33, caput, um dos responsáveis para que o Brasil ocupe a terceira posição mundial no número de pessoas encarceradas (820,7 mil, segundo dados apresentados na edição de 2022 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública [1]

Uso compartilhado de drogas: pena

Agora que sabemos o que é uso compartilhado de drogas e seus requisitos, vejamos qual é a pena cominada para esse crime.

O art. 33, § 3°, da Lei de Drogas, prevê pena de detenção, de 6 meses a 1 ano, e pagamento de 700 a 1500 dias-multa, sem prejuízo das penas previstas no art. 28 (advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de serviços à comunidade e/ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo).

A pessoa a quem foi oferecida a substância, ao contrário, não pratica crime algum, uma vez que, como explicamos no capítulo anterior, tão somente ser usuário de drogas não é crime.

[1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-10/populacao-carceraria-volta-aumentar-deficit-vagas-cai.

Referências Bibliográficas

CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 6ª. Edição. São Paulo: Saraiva, 2013.

LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 8ª. Edição. Bahia: Juspodivm, 2020.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima
Fale agora com um advogado!