Quando a polícia pode entrar na sua casa?

No post de hoje, vamos entender quando a polícia pode entrar na sua casa sem mandado e prendê-lo em flagrante por cultivo doméstico de cannabis.

Aprendemos no capítulo anterior que nosso país é signatário da política criminal de war on drugs encabeçada pelos Estados Unidos da América nos anos 1970, durante o governo de Richard Nixon e prevista em convenções da Organização das Nações Unidas – ONU que servem de paradigma para a elaboração de diplomas normativos internos – a exemplo da Lei n. 11.343/2006 – quais sejam, a Convenção Única sobre Entorpecentes, de 1961; o Convênio sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971; e a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de 1988.

Por essa razão, a Lei de Drogas brasileira proibiu o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização; bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso (art. 2°).

Tornou típicas, por conseguinte, as condutas relativas a semear, cultivar ou colher, para consumo pessoal, plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica; e o comportamento de quem semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas (art. 28, § 1° e art. 33, § 1°, II, respectivamente).

Apesar da conjuntura proibicionista, considerando o reconhecimento da eficácia terapêutica da cannabis e os elevados custos necessários para a importação do medicamento já devidamente registrado no órgão sanitário competente (RDC n. 130/2016 da ANVISA) para o tratamento de várias patologias que acometem o ser humano, há quem tenha decidido cultivar maconha para consumo próprio em casa, ainda que sem autorização judicial para tanto.

Por se tratar de crime permanente, ou seja, aquele cuja consumação se alonga no tempo, dependente da atividade do agente, que poderá cessar quando este quiser (Bitencourt, 2011, p. 255), entendendo-se em flagrante delito enquanto não cessar a permanência (art. 303 do Código de Processo Penal), são inúmeros os casos analisados pelos tribunais superiores em que se questiona, à luz do direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, a (i)legalidade de diligências policiais de busca domiciliar sem ordem judicial que resultaram na prisão em flagrante do morador por cultivar a planta da cannabis.

Inviolabilidade do domicílio

Isso porque a Constituição Federal, em seu art. 5°, XI, dispõe que:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.

Neste capítulo, então, vamos verificar o que se entende por flagrante delito nos casos de crimes permanentes, pois configura um dos pressupostos autorizadores da busca domiciliar sem autorização judicial, uma vez que, como vimos, sua consumação se prolonga no tempo, autorizando a prisão em flagrante porque, nesse caso, considera-se que o agente está “cometendo a infração penal” (art. 302, I, do CPP [Lopes Jr., 2020, p. 658]).

Uma interpretação literal nos levaria a concluir que, em se tratando de cultivo ilegal de maconha, estaria a autoridade policial e seus agentes autorizados a realizar buscas domiciliares, seja durante o dia ou noite, e independente de ordem judicial, para prender em flagrante o grower enquanto este mantivesse a plantação em sua casa.

A doutrina comprometida com o respeito aos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, por outro lado, defende a necessidade de prévia visibilidade da prática do crime permanente para que se permita o ingresso da polícia, sem mandado judicial, na casa a fim de proceder à eventual prisão em flagrante, sob pena de ilicitude das provas assim obtidas.

De acordo com esse entendimento, portanto, a polícia não pode, sem determinação judicial, entrar na residência de quem seja sem informações concretas de que naquele local provavelmente está ocorrendo a prática de um crime.

Fundadas razões

O debate foi levado ao Supremo Tribunal Federal, que no RE n. 603.616/RO, rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, j. 5/11/2015, sob a sistemática da repercussão geral (Tema 280), fixou a seguinte tese:

A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados.

Faz-se necessário reproduzir, na íntegra, a ementa do julgado citado:

Recurso extraordinário representativo da controvérsia. Repercussão geral. 2. Inviolabilidade de domicílio – art. 5º, XI, da CF. Busca e apreensão domiciliar sem mandado judicial em caso de crime permanente. Possibilidade. A Constituição dispensa o mandado judicial para ingresso forçado em residência em caso de flagrante delito. No crime permanente, a situação de flagrância se protrai no tempo. 3. Período noturno. A cláusula que limita o ingresso ao período do dia é aplicável apenas aos casos em que a busca é determinada por ordem judicial. Nos demais casos – flagrante delito, desastre ou para prestar socorro – a Constituição não faz exigência quanto ao período do dia. 4. Controle judicial a posteriori. Necessidade de preservação da inviolabilidade domiciliar. Interpretação da Constituição. Proteção contra ingerências arbitrárias no domicílio. Muito embora o flagrante delito legitime o ingresso forçado em casa sem determinação judicial, a medida deve ser controlada judicialmente. A inexistência de controle judicial, ainda que posterior à execução da medida, esvaziaria o núcleo fundamental da garantia contra a inviolabilidade da casa (art. 5, XI, da CF) e deixaria de proteger contra ingerências arbitrárias no domicílio (Pacto de São José da Costa Rica, artigo 11, 2, e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, artigo 17, 1). O controle judicial a posteriori decorre tanto da interpretação da Constituição, quanto da aplicação da proteção consagrada em tratados internacionais sobre direitos humanos incorporados ao ordenamento jurídico. Normas internacionais de caráter judicial que se incorporam à cláusula do devido processo legal. 5. Justa causa. A entrada forçada em domicílio, sem uma justificativa prévia conforme o direito, é arbitrária. Não será a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que justificará a medida. Os agentes estatais devem demonstrar que havia elementos mínimos a caracterizar fundadas razões (justa causa) para a medida. 6. Fixada a interpretação de que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados. 7. Caso concreto. Existência de fundadas razões para suspeitar de flagrante de tráfico de drogas. Negativa de provimento ao recurso.

Destacamos que o Min. Gilmar Mendes, relator do recurso, explicou em seu voto que:

A entrada forçada em domicílio, sem uma justificativa prévia conforme o direito é arbitrária. Não será a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso que justificará a medida. Os agentes estatais devem demonstrar que havia elementos mínimos a caracterizar fundadas razões (justa causa) para a medida.

O Superior Tribunal de Justiça, seguindo a tese fixada pelo STF, vem anulando as provas obtidas em diligências policiais de busca domiciliar sem a devida autorização judicial e que resultaram na prisão em flagrante e condenação do morador pela prática de crime de natureza permanente, considerando não ter sido demonstrada a necessária justa causa que justificasse o ingresso dos agentes, sem ordem judicial, na casa.

No AgRg no HC n. 610.345/RS, rel. Min. Jesuíno Rissato (Des. Convocado do TJDFT), Quinta Turma, j. 4/10/2022, por exemplo, foi decidido que a mera denúncia anônima, desacompanhada de outros elementos prévios e indicativos da existência de que o crime esteja ocorrendo, não é suficiente a legitimar o ingresso de policiais no domicílio, sem prévio mandado judicial, confiram:

PENAL. PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. CRIME DE POSSE DE ARMA DE FOGO. ART. 12 LEI 10826/2003. NULIDADE DA PROVA. INGRESSO NA RESIDÊNCIA. AUSÊNCIA DE MANDADO DE BUSCA E APREENSÃO. DENÚNCIA ANÔNIMA. JUSTA CAUSA E FUNDADAS RAZÕES. INEXISTÊNCIA. ILEGALIDADE CONFIGURADA. INVALIDADE. NULIDADE DA PROVA QUANTO À APREENSÃO DA ARMA PROVENIENTE DO INGRESSO DOMICILIAR. AUSÊNCIA DE ARGUMENTOS NOVOS APTOS A ALTERAR A DECISÃO AGRAVADA. I – O agravo regimental deve trazer novos argumentos capazes de alterar o entendimento anteriormente firmado, sob pena de ser mantida a r. decisão vergastada pelos próprios fundamentos. II – Tem-se firmado o entendimento de que a mera denúncia anônima, desacompanhada de outros elementos prévios e indicativos da existência de que o crime esteja ocorrendo, não é suficiente a legitimar o ingresso de policiais no domicílio, sem prévio mandado judicial. Precedentes. III – Os milicianos, ao receber a denúncia anônima, não empreenderam qualquer atividade investigativa preliminar ao ingresso forçado no domicílio do paciente, tampouco levaram ao conhecimento da policia judiciária tal fato, com escopo de que esta procedesse à maiores investigações com escopo na verificação de fundadas razões para a incursão policial no domicílio que, por conseguinte, decorreu unicamente da informação apócrifa, o que não é admitido por este Sodalício. IV – In casu, a abordagem policial ocorreu à noite, por volta de 20h45, como se verifica da denúncia de fls. 26-30, sendo que a própria denúncia noticia que “policiais militares realizavam patrulhamento de rotina, quando receberam denúncia anónima de trafico de drogas em uma residência. Em abordagem a residência? conhecida como ponto de venda de entorpecentes – lograram capturar os denunciados, que buscaram fugir com a chegada da policia. Em revista pessoal o denunciado (…) foi flagrado portando a indicada arma de fogo, devidamente municiada. Já com o denunciado (…), foi encontrada a droga apreendida devidamente acondicionada e preparada para venda” (fl. 27), do que se depreende que houve a prévia incursão e revista, sem fundadas razões e/ou prévia autorização ou mandado judicial, cuja diligência foi originada de denúncia anônima de suposta venda de drogas, a respeito da qual não consta qualquer investigação prévia ou outro motivo a sustentar as fundadas razões, que não a mencionada denúncia anônima. V – Não restaram demonstradas fundadas razões para ingresso no domicílio, o qual foi justificado apenas por uma denúncia anônima a respeito da qual não foram realizadas prévias diligências no sentido de averiguar a veracidade da denúncia, sendo certo que a posterior apreensão da arma não legitima a ausência de fundadas razões que devem ser prévias ao ingresso. Agravo regimental desprovido.

Referências Bibliográficas

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 16ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2011.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 17ª. Edição. São Paulo: Saraiva, 2020.

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