No post de hoje, vamos verificar o que é considerado tráfico de drogas, de modo a (não) atrair o tratamento penal mais severo previsto na Lei dos Crimes Hediondos.
A Constituição Federal, em seu art. 5°, XLIII, determina que:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.
Tráfico de drogas: definição
O legislador constituinte dispensou tratamento penal mais severo ao que chamou de “tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins”, determinando ser inafiançável e insuscetível de graça ou anistia, bem como sua equiparação aos crimes hediondos.
O Código Penal, a Lei de Execuções Penais (n. 7.210/1984), a Lei dos Crimes Hediondos (n. 8.072/1990) e a Lei de Drogas (n. 11.343/2006), nesse sentido, disciplinam uma série de restrições ao crime de tráfico de drogas, por exemplo: maior tempo de cumprimento de pena para progredir de regime e obter livramento condicional; proibição de indulto; etc.
Em nenhum desses diplomas legais, no entanto, existe definição sobre o que é considerado tráfico de drogas, assim como também não há um crime cujo nomen juris seja tráfico de drogas, tal como o homicídio (art. 121 do CP) e o furto (art. 155 do CP), para citar apenas esses exemplos.
Tráfico de drogas é crime hediondo
Considerando o maior rigor punitivo determinado pela Constituição Federal e previsto na legislação infraconstitucional para os comportamentos considerados tráfico de drogas, com sua equiparação aos crimes hediondos, urgente definir quais tipos penais previstos na Lei n. 11.343/2006 atraem a incidência da Lei n. 8.072/1990.
Igualmente, definir o que é considerado tráfico de drogas, de modo a restringir o espectro de criminalização do denominado constitucionalmente “tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins”, principal responsável para que o país ocupe a terceira posição mundial no número de pessoas encarceradas (820,7 mil, segundo dados apresentados na edição de 2022 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública [1]).
A doutrina crítica, comprometida em estabelecer critérios de classificação das condutas passíveis da adjetivação “tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins”, defende que:
Para que se possam qualificar determinadas condutas como tráfico de entorpecentes, a marca distintiva do seu verbo constitutivo deve expor atos marcadamente de comércio – importar, exportar e vender, notadamente. Todos os demais, inclusive aqueles relacionados à produção, não se compatibilizam com a noção constitucional de tráfico de drogas, estando blindados pelo princípio da legalidade dos efeitos da Lei 8.072/90 (Carvalho, 2013, p. 356 e 358).
O Supremo Tribunal Federal, contudo, decidiu que se considera tráfico de drogas aquelas condutas previstas no art. 33, caput, e § 1°, da Lei de Drogas, de modo a atrair, nesses casos, os efeitos da Lei dos Crimes Hediondos. Vejamos a ementa do julgado:
HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL, PENAL E PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. APLICAÇÃO DA LEI N. 8.072/90 AO TRÁFICO DE ENTORPECENTES PRIVILEGIADO: INVIABILIDADE. HEDIONDEZ NÃO CARACTERIZADA. ORDEM CONCEDIDA. 1. O tráfico de entorpecentes privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei n. 11.313/2006) não se harmoniza com a hediondez do tráfico de entorpecentes definido no caput e § 1º do art. 33 da Lei de Tóxicos. 2. O tratamento penal dirigido ao delito cometido sob o manto do privilégio apresenta contornos mais benignos, menos gravosos, notadamente porque são relevados o envolvimento ocasional do agente com o delito, a não reincidência, a ausência de maus antecedentes e a inexistência de vínculo com organização criminosa. 3. Há evidente constrangimento ilegal ao se estipular ao tráfico de entorpecentes privilegiado os rigores da Lei n. 8.072/90 (HC n. 118.533/MS, rel. Min. Cármen Lúcia, Pleno, j. 23/06/2016).
Em outras palavras, tráfico de drogas é crime hediondo, mas apenas se a ação praticada pelo sujeito encontrar enquadramento no tipo básico do art. 33 ou nas condutas equiparadas criminalizadas em seu § 1°.
Quantidade de droga para configurar tráfico
No Brasil, é importante que se diga logo, assim como não há na lei quanto de droga é considerado usuário, não existe previsão normativa ou construção jurisprudencial sobre a partir de quantos gramas é tráfico.
O legislador brasileiro, em vez disso, adotou o sistema do reconhecimento judicial ou policial, cabendo ao juiz ou à autoridade policial analisar cada caso concreto e decidir se a droga apreendida era para destinação pessoal ou para tráfico (Gomes, 2013, p. 147).
A autoridade judicial ou policial deverá, então, se debruçar sobre os critérios estabelecidos no art. 28, § 2º, da Lei de Drogas, para decidir se a substância apreendida se destinava ao consumo pessoal ou tráfico de drogas.
Listamos, a seguir, cada um desses vetores:
- Natureza e quantidade da substância apreendida;
- Local e condições em que se desenvolveu a ação;
- Circunstâncias sociais e pessoais;
- Conduta e antecedentes do agente.
Em outras palavras, incumbe ao juiz analisar as circunstâncias fáticas do caso concreto e decidir se se trata de porte de drogas para consumo pessoal ou tráfico (Lima, 2020, p. 1030).
Mais importante do que a quantidade de droga para configurar tráfico, pensamos, é a finalidade do agir daquele que tem o porte de drogas consideradas ilícitas no Brasil, isto é, se para uso próprio ou tráfico.
Isso porque:
Em havendo especificação legal do dolo no art. 28 (especial fim de consumo pessoal), para que se respeitem os princípios constitucionais de proporcionalidade e de ofensividade, igualmente deve ser pressuposto da imputação das condutas do art. 33 o desígnio mercantil. Do contrário, em não havendo esta comprovação ou havendo dúvida quanto à finalidade de comércio, imprescindível a desclassificação da conduta para o tipo do art. 28 (Carvalho, 2013, p. 325).
O Superior Tribunal de Justiça [2], no entanto, vem entendendo que a consciência e a vontade de praticar qualquer um dos 18 verbos contidos no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, são suficientes para a consumação do crime, sendo desnecessária a realização de atos de venda da substância proibida…
[1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-10/populacao-carceraria-volta-aumentar-deficit-vagas-cai.
[2] Jurisprudência em Teses. Edição n. 60: Lei de Drogas II.
Referências Bibliográficas
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 6ª. Edição. São Paulo: Saraiva, 2013.
GOMES, Luiz Flávio. Lei de Drogas Comentada. 5ª. Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 8ª. Edição. Bahia: Juspodivm, 2020.